"Já tive ocasião de afirmar uma vez, a propósito da arte erudita e popular dos portugueses, o que agora vou repetir com sentido mais largo: que a história inteira dos portugueses - e não apenas a das artes - os revela um povo com uma capacidade única de perpetuar-se noutros povos. Mas sem que o povo português tenha feito nunca dessa perpetuação uma política biológica e anticristã de exclusividade: nem exclusividade de raça nem exclusividade de cultura.
Ao contrário: o português se tem perpetuado, dissolvendo-se sempre noutros povos a ponto de parecer ir perder-se nos sangues e nas culturas estranhas. Mas comunicando-lhes sempre tantos dos seus motivos essenciais de vida e tantas das suas maneiras mais profundas de ser que passados séculos os traços portugueses se conservam nas faces dos homens de cores diversas. (...)
Toda a obra de colonização lusitana - e não apenas a sua arte - está cheia dos riscos de tão esplêndida aventura de dissolução. Portugal seguiu na sua política colonizadora aquelas palavras misteriosas das Escrituras: ganhou a vida perdendo-a. Dissolvendo-se. Aventura de dissolução acompanhada do gosto da rotina.
Gosto de que o português tem sido acusado como se fora uma inferioridade e que é, entretanto, metade da sua força; o segredo de ele prolongar-se hoje num Brasil que cada dia se torna uma afirmação mais forte das possibilidades continentais - porque a América portuguesa é um continente - da cultura de origem portuguesa, tornada aqui plural, aberta a outras culturas, conservados os valores tradicionais portugueses como o necessário lastro comum, conservada a língua portuguesa como instrumento nacional único de intercomunicação verbal entre os brasileiros de todas as regiões e de todas as procedências, não só por sentimento de tradição como por necessidade prática de articulação das mesmas regiões em nação ou, antes, em larga democracia social, conservado o cristianismo que os portugueses trouxeram a esta parte da América como a forma apolítica mas igualmente nacional ou geral - tão nacional ou geral como a língua - dos brasileiros de origens diversas se intercomunicarem se não sempre religiosamente, eticamente - e de participarem - se não religiosa, eticamente - da larga sociedade cristã de que fala T.S. Eliot em livro recente: aquela em que o natural do cristianismo é aceito, sociologicamente, por todos; o sobrenatural - com seus dogmas, suas doutrinas, sua teologia - pelos que têm olhos para o sobrenatural."
|Gilberto Freyre - Uma Cultura Ameaçada e Outros Ensaios
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